Essa reportagem do site da Superinteressante ajuda a quebrar alguns desses mitos e a entender que as ditaduras nunca são alternativas boas para se resolver os problemas de um país.
Gregório Bezerra, ex-deputado comunista, foi arrastado pelas de Recife no primeiro dia após o golpe por militares: o que que a Repressão começou junto com o golpe. |
Link original: http://super.abril.com.br/blogs/historia-sem-fim/10-mitos-sobre-a-ditadura-no-brasil/
10 mitos sobre a
ditadura no Brasil (ou Por que você não deve querer que ela volte)
Em 1964, um golpe de estado que derrubou o presidente João Goulart e instaurou
uma ditadura no Brasil. O regime autoritário militar durou até 1985. Censura,
exílio, repressão policial, tortura, mortes e “desaparecimentos” eram
expedientes comuns nesses “anos de chumbo”. Porém, apesar de toda documentação
e testemunhos que provam os crimes cometidos durante o Estado de exceção, tem
gente que acha que naquela época “o Brasil era melhor”. Mas pesquisas da época
– algumas divulgados só agora, graças à Comissão
Nacional da Verdade –
revelam que o período não trouxe tantas vantagens para o país.
Nas últimas semanas, recebemos muitos
comentários saudosistas em relação à ditadura na página da SUPER no Facebook.
Em uma época em que não é incomum ver gente clamando pela volta do regime e a
por uma nova intervenção militar no país, decidimos falar dos mitos sobre a
ditadura em que muita gente acredita.
1. “A ditadura no Brasil foi branda”
Pois bem, vamos lá. Há quem diga que a
ditadura brasileira teria sido “mais branda” e “menos violenta” que outros
regimes latino-americanos. Países como Argentina e Chile, por exemplo, teriam
sofrido muito mais em “mãos militares”. De fato, a
ditadura nesses países também foi sanguinária. Mas repare bem:
também foi. Afinal, direitos
fundamentais do ser humano eram constantemente violados por aqui: torturas e assassinatos de presos
políticos – e até mesmo de crianças – eram comuns nos “porões do regime”.
Esses crimes contra a humanidade, hoje, já são admitidos até mesmo pelos
militares .
Para quem, mesmo assim, acha que foi “suave” a repressão, um estudo do governo federal analisou relatórios e propõe triplicar a lista oficial de
mortos e desaparecidos políticos vítimas da ditadura militar. Ou seja: de 357
mortos e desaparecidos com relação direta ou indireta com a repressão da
ditadura (segundo a lista da Secretaria de Direitos Humanos), o número pode
saltar para 957 mortos.
2. “Tínhamos educação de qualidade”
Naquele época, o “livre-pensar” não era,
digamos, uma prioridade para o regime. Havia um intenso
controle sobre informações e ideologia – o que engessava o currículo – e as
disciplinas de filosofia e sociologia foram substituídas por Educação, Moral e
Cívica e por OSPB (Organização Social e Política Brasileira, uma matéria
obrigatória em todas as escolas do país, destinada à transmissão da ideologia
do regime autoritário). Segundo o estudo “Mapa do Analfabetismo no Brasil”, do
Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais), do Ministério da
Educação, o Mobral (Movimento Brasileiro para Alfabetização) fracassou. O
Mobral era uma resposta do regime militar ao método do educador Paulo Freire –
considerado subversivo -, empregado, já naquela época, com
sucesso no mundo todo. Mas os problemas não paravam por aí: com o baixo índice
de investimento na escola pública, as unidades privadas prosperaram. E
faturaram também. Esse “sucateamento” também chegou às universidades: foram
afastadas dos centros urbanos – para evitar “baderna” – e sofreram a imposição
do criticado sistema de crédito.
3. “A saúde não era o caos de hoje”
Se hoje todo mundo reclama da “qualidade do
atendimento” e das “filas intermináveis” nos hospitais e postos de saúde,
imagina naquela época. Para começar, o acesso à saúde era restrito: o Inamps
(Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social) era responsável
pelo atendimento público, mas era exclusivo aos trabalhadores formais. Ou seja,
só era atendido quem tinha carteira de trabalho assinada. O resultado era
esperado: cresceu a prestação de serviço pago, com hospitais e clínicas
privadas. Essas instituições abrangeram, em 1976, a quase 98% das internações. Planos de saúde ainda não
existiam e o saneamento básico chegava a poucas localidades, o que aumentava o
número de doenças. Além disso, o modelo hospitalar adotado relegava a
assistência primária a segundo plano, ou seja, para os militares era melhor remediar que prevenir.
O tão criticado SUS (Sistema Único de Saúde) – que hoje atende cerca de 80% da
população – só foi criado em 1988, três anos após o fim da ditadura.
4. “Não havia corrupção no Brasil”
Uma características básica da democracia é a participação da sociedade civil
organizada no controle dos gastos, denunciando a corrupção. E em um regime de
exceção, bem, as coisas não funcionavam exatamente assim. Não havia conselhos
fiscalizatórios e, depois da dissolução do Congresso Nacional, as contas
públicas não eram sequer analisadas, quanto mais discutidas. Além disso, os
militares investiam bilhões e bilhões em obras faraônicas – como Itaipu,
Transamazônica e Ferrovia do Aço -, sem nenhum controle de gastos. Esse clima
tenso de “gastos estratosféricos” até levou o ministro Armando Falcão, pilar da
ditadura, a declarar que “o problema mais grave no Brasil não é a subversão. É
a corrupção, muito mais difícil de caracterizar, punir e erradicar”.Muito
pouco se falava em corrupção. Mas não significa que ela não estava lá. Experimente jogar no Google
termos como “Caso Halles”, “Caso BUC” e “Caso UEB/Rio-Sul” e você nunca mais
vai usar esse argumento.
5. “Os militares evitaram a ditadura
comunista”
É fato: o governo do presidente João
Goulart era constitucional. Seguia todo à risca o protocolo. Ele chegou ao
poder depois da renúncia de Jânio Quadros, de quem era vice. Em 1955, foi
eleito vice-presidente com 500 mil votos a mais que Juscelino Kubitschek. Porém,
quando Jango assumiu a Presidência, a imprensa bateu na tecla de que em seu
governo havia um “caos administrativo” e que havia a necessidade de
reestabelecer a “ordem e o progresso” através de uma intervenção militar. Foi
criada, então, a ideia da iminência de um “golpe comunista” e de um alinhamento
à URSS, o que virou motivo para a intervenção. Goulart não era o que se poderia
chamar de marxista. Antes de ser presidente, ele fora ministro de Getúlio
Vargas e Juscelino Kubitschek e estava mais próximo do populismo. Em entrevista inédita recentemente divulgada,
o presidente deposto afirmou que havia uma confusão entre “justiça social” – o
que ele pretendia com as Reformas de Base – e comunismo, ideia que ele não
compartilhava: “justiça
social não é algo marxista ou comunista”, disse. Há também outro fator: pesquisas feitas pelo Ibope às vésperas do golpe,
em 31 de março, mostram que Jango tinha um amplo apoio popular, chegando a 70%
de aprovação na cidade de São Paulo. Esta pesquisa, claro, não foi revelada à
época, mas foi catalogada pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).
6. “O Brasil cresceu economicamente”
Um grande legado econômico do regime
militar é indiscutível: o
aumento da dívida externa, que permaneceu impagável por toda a primeira década
de redemocratização. Em
1984, o Brasil devia a governos e bancos estrangeiros o equivalente a 53,8% de
seu Produto Interno Bruto (PIB). Sim, mais da metade do que arrecadava. Se
transpuséssemos essa dívida para os dias de hoje, seria como se o Brasil
devesse US$ 1,2 trilhão, ou seja, o quádruplo da atual dívida externa. Além
disso, o suposto “milagre econômico brasileiro” – quando o Brasil cresceu acima
de 10% ao ano – mostrou que o bolo
crescia sim, mas poucos podiam comê-lo. A
distribuição de renda se polarizou: os 10% dos mais ricos que tinham 38% da
renda em 1960 e chegaram a 51% da renda em 1980. Já os mais pobres, que tinham
17% da renda nacional em 1960, decaíram para 12% duas décadas depois. Quer
dizer, quem era rico ficou ainda mais rico e o pobre, mais pobre que antes. Outra coisa que piorava
ainda mais a situação do população de baixa renda: em pleno milagre, o salário
mínimo representava a metade do poder de compra que tinha em 1960.
7. “As igrejas apoiaram”
Sim, as igrejas tiveram um papel destacado
no apoio ao golpe. Porém, em todo o Brasil, houve religiosos que criaram grupos
de resistência, deixaram de aceitar imposições do governo, denunciaram
torturas, foram torturados e mortos e até ajudaram a retirar pessoas
perseguidas pela ditadura no país. Inclusive, ainda durante o regime militar,
uma das maiores ações em defesa dos direitos humanos – o relatório “Brasil:
Nunca Mais” – originou-se de uma ação ecumênica, desenvolvida por dom Paulo
Evaristo Arns, pelo rabino Henry Sobel e pelo pastor presbiteriano Jaime
Wright. Realizado clandestinamente entre 1979 e 1985, gerou uma importante
documentação sobre nossa história, revelando a extensão da repressão política
no Brasil.
Uma características básica da democracia é a participação da sociedade civil organizada no controle dos gastos, denunciando a corrupção. E em um regime de exceção, bem, as coisas não funcionavam exatamente assim. Não havia conselhos fiscalizatórios e, depois da dissolução do Congresso Nacional, as contas públicas não eram sequer analisadas, quanto mais discutidas. Além disso, os militares investiam bilhões e bilhões em obras faraônicas – como Itaipu, Transamazônica e Ferrovia do Aço -, sem nenhum controle de gastos. Esse clima tenso de “gastos estratosféricos” até levou o ministro Armando Falcão, pilar da ditadura, a declarar que “o problema mais grave no Brasil não é a subversão. É a corrupção, muito mais difícil de caracterizar, punir e erradicar”.Muito pouco se falava em corrupção. Mas não significa que ela não estava lá. Experimente jogar no Google termos como “Caso Halles”, “Caso BUC” e “Caso UEB/Rio-Sul” e você nunca mais vai usar esse argumento.
8. “Durante a ditadura, só morreram vagabundos e terroristas”
Esse é um argumento bem fácil de encontrar em caixas de comentário da internet. Dizem que quem não pegou em armas nunca foi preso, torturado ou morto pelas mãos de militares. Provavelmente, quem acredita nisso não coloca na conta o genocídio de povos indígenas na Amazônia durante a construção da Transamazônica. Segundo a estimativa apresentada na Comissão da Verdade, 8 mil índios morreram entre 1971 e 1985. Isso sem contar as outras vítimas da ditadura que não faziam parte da guerrilha. É o caso de Rubens Paiva. O ex-deputado, cassado depois do golpe, em 1964, foi torturado porque os militares suspeitavam que, através dele, conseguiriam chegar a Carlos Lamarca, um dos líderes da oposição armada. Não deu certo: Rubens Paiva morreu durante a tortura. A verdade sobre a morte do político só veio à tona em 2014. Antes disso, uma outra versão (bem mal contada) dizia que ele tinha “desaparecido”. Para entrar na mira dos militares durante a ditadura, lutar pela democracia – mesmo sem armas na mão – já era motivo o suficiente.
9. “Todos os militares apoiaram o regime”
Ser militar na época não era sinônimo de golpista, claro. Havia uma corrente de militares que apoiava Goulart e via nas reformas de base um importante caminho para o Brasil. Houve focos de resistência em São Paulo, no Rio de Janeiro e também no Rio Grande do Sul, apesar do contragolpe nunca ter acontecido. Durante o regime, muitos militares sofreram e estima-se que cerca 7,5 mil membros das Forças Armadas e bombeiros foram perseguidos, presos, torturados ou expulsos das corporações por se oporem à ditadura. No auge do endurecimento do regime, os serviços secretos buscavam informações sobre focos da resistência militar, assim como a influência do comunismo nos sindicatos, no Exército, na Força Pública e na Guarda Civil.
10. “Naquele tempo, havia civismo e não tinha tanta baderna como greves e passeatas”
O então sindicalista Luiz Inácio Lula da Silva discursando em greve no fim dos anos 70. |
Quando os militares assumiram o poder, uma das primeiras medidas que tomaram foi assumir a possibilidade de suspensão dos diretos políticos de qualquer cidadão. Com isso, as representações sindicais foram duramente afetadas e passaram a ser controladas com pulso forte pelo Ministério do Trabalho, o que gerou o enfraquecimento dos sindicatos, especialmente na primeira metade do período de repressão. Afinal, para que as leis trabalhistas vigorem, é necessário que se judicializem e que os patrões as respeitem. Com essa supressão, os sindicatos passaram a ser compostos mais por agentes do governo que trabalhadores. E os direitos dos trabalhadores foram reduzidos à vontade dos patrões. Passeatas eram duramente repreendidas. Quando o estudante Edson Luísa de Lima Souto foi morto em uma ação policial no Rio de Janeiro, multidões foram às ruas no que ficou conhecido com o a Passeata dos Cem Mil. Nos meses seguintes, a repressão ao movimento estudantil só aumentou. As ações militares contra manifestações do tipo culminaram no AI-5. O que aconteceu daí para a frente você já sabe.
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