A ideia de que os habitantes do Rio Grande do Sul são todos
separatistas, com espírito guerreiro e livre e muito orgulhosos de si mesmos
parece consolidada. Mas a palavra “gaúcho” não está associada originalmente a
estas características. Gaúcho era o homem sem laços, que vivia do que fosse
preciso, inclusive do roubo de gado. Sua associação ao Rio Grande do Sul teve
início na Revolução Farroupilha (1835-1845).
O gaúcho na visão do pintor Debret no século XIX |
Uma ideia que se tornou “natural” é que a então província do Rio Grande
de São Pedro aderiu totalmente à luta contra o Império brasileiro. Na verdade,
uma parte considerável dos rio-grandenses não foi farroupilha, assim como uma
parte considerável dos farroupilhas não eram rio-grandenses por nascimento
(Giuseppe Garibaldi, por exemplo, era italiano!). Cidades importantes como Rio
Grande, Pelotas e Porto Alegre não estiveram sob o poder farroupilha. Ou seja,
mais da metade do atual Rio Grande do Sul não esteve ao lado dos farroupilhas,
assim como a maioria da população, como Porto Alegre (ironicamente, a capital
gaúcha é,hoje, a sede do acampamento farroupilha...).
Mas então quem eram os revoltosos? Grande parte estava envolvida
economicamente com a produção de gado e de charque, um tipo de carne salgada,
exportada como alimento para a escravaria e que foi riqueza da região no século
XIX. As reivindicações estavam ligadas a alta taxa cobrada pelo império ao sal
– matéria-prima para o charque e as taxas cobradas pelo comércio entre
províncias durante o período regencial. Era uma revolta contra a política
fiscal do império, liderada pela elite rio-grandense, que controlava as
atividades econômicas da região.
O Gaúcho "moderno" - diferente da imagem anterior |
Como a revolta se tornou símbolo de gauchismo? Não foi de forma rápida,
mas sim, uma construção histórica, um processo longo iniciado após o fim do
conflito. A consolidação passa, sem dúvida, pela associação das características
do “gaúcho” – mítico, trabalhando no gado e guerreador contra os “castelhanos”
- com os guerreiros farroupilhas. A honra e a bravura associadas aos revoltosos
passou para todos os habitantes do estado, como se os ideais e o caráter dos
farroupilhas tivesse continuidade em todos os nascidos no Rio Grande do Sul.
Ao ignorarmos que os farroupilhas eram a elite do sul, ignoramos também
as divisões sociais dentro das tropas revolucionárias. A presença de escravos –
os “Lanceiros Negros” – é esquecida ou é apresentada como se os revoltosos
fossem contra a escravidão... O suposto abolicionismo farroupilha
relacionava-se com a prática da região de liberar escravos para as guerras,
como soldados de Infantaria, uma vez que se precisava de homens aptos para as
guerras. Sobre os lanceiros negros, discute-se até hoje se foram assassinados
pelos próprios farroupilhas...
O RS em 1747: fronteiras em conflito |
O que diferencia a revolução farroupilha das outras revoltas regenciais?
O separatismo não foi uma peculiaridade sulista, já que as outras revoltas
também estabeleceram governos paralelos ao império, a revolta contra a
“exploração” do império também era algo comum em revoltas como a Sabinada
(Bahia) e a Cabanagem (Pará). O que fez a diferença é a posição geográfica do
Rio Grande do Sul: fazendo fronteira com os países do Prata – Argentina e
Uruguai -, o temor do império era de que os sulistas deixassem de ser
“sentinelas do Brasil”, ou seja, a Província que protegeria o Brasil de guerras
contra os países platinos e, ao contrário, tornassem-se aliados de argentinos e
uruguaios. Com tal preocupação é que o Império Brasileiro preocupou-se em
acertar a paz com os rio-grandenses em 1845.
Representação de um Lanceiro Negro |
O papel da História é problematizar essas questões, permitindo que a
sociedade perceba que as versões do episódio são historicamente construídas e
que sua transformação em ponto fundador de uma identidade regional foi
posterior ao conflito farroupilha.
Texto adaptado de: MENEGAT, Carla. A invenção dos “gaúchos”. IN: Revista de
História da Biblioteca Nacional, ano 8, nº86, Nov. de 2012.
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